A nudez de Noé. (Gênesis 9: 20-29)

A nudez de Noé. (Gênesis 9: 20-29)

Rev. Jorge Torres

O texto em hebraico sugere que Noé desnudou-se deliberadamente de forma vergonhosa e imoral como reflexo do abuso cometido pelo uso excessivo do vinho.

A primeira menção do vinho na bíblia como bebida alcoólica produzida pela fermentação de açúcares contidos na uva, infelizmente, não retrata um fato benéfico ao ser humano, mas, os efeitos negativos e nefastos sobre o homem que o ingeriu de forma irresponsável. Alguns, talvez adeptos da apreciação de bebidas alcoólicas tentarão desculpar Noé, sugerindo que as novas condições climáticas da terra pós-diluviana facilitaram a fermentação do vinho, e que Noé não sabia o que estava fazendo, ou melhor o que estava tomando.

A verdade é que esse fato espelha o terceiro fracasso da humanidade. O ser humano tinha desobedecido no Éden, resultando em sua expulsão do jardim; havia corrompido a Terra, como conseqüência o dilúvio; e agora, o bestunto da nova humanidade se havia encachaçado de forma impudente! 

Para piorar as coisas, segundo o relato bíblico, seu filho CAM, viu o estado deplorável do pai e, acabou relatando o fato para seus irmãos SEM e JAFÉ, os quais, agindo prudentemente, preferiram cobrir o pai, sem, contudo, vê-lo desnudado.

Depois de sarado da ressaca, Noé lança uma maldição que foi direcionada não para seu filho CAM que o teria visto naquela situação desnudo e sim, ao seu neto, filho mais novo de CAM, de nome CANAÃ.

Diante deste quadro com requintes teatrais, normalmente vem em nossa mente à seguinte pergunta: Quem cometeu pecado? Noé? Seu filho CAM? Ou seu neto CANAÃ? 

Afinal de contas, quem acabou pagando as contas foi CANAÃ, pois a maldição proferida foi destinada a ele e seus descendentes.

O fato narrado pelo autor de gênesis apresenta como cenário a tenda de Noé, ele estava dentro de sua própria tenda, em privacidade. O mesmo autor prefere reduzir ao mínimo possível os detalhes de toda a cena desenrolada, pois, qualquer acréscimo poderia trazer sérias implicações e, com certeza, Hollywood se divertiria ao máximo, com suas “viagens imaginárias”, nos transportando para dentro da tenda de Noé, em versão 3D.

Mas, tentando, responder ao questionamento que povoa nossa mente, quem, afinal pecou? Ao olharmos, para a própria bíblia, acharemos a resposta, ou seja, “Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus” (Romanos 3:23). 

Muitos ficam incomodados ante a deplorável condição de Noé, o homem que antes do dilúvio foi descrito como “um homem justo e íntegro entre seus contemporâneos” (Gn 6:9). Como pode sucumbir desta maneira? Por certo, (não) deveria saber ele que intemperança e impureza andam juntas? Apesar do autor do livro do Gênesis não enfatizar a conduta de Noé, é muito prematuro não encontrar nenhuma razão para presumir qualquer má conduta por parte de Noé, além da indiscreta bebedeira e sua conseqüente nudez. Os anos seguintes de vida de Noé, após o dilúvio, talvez 350 anos, foram em silêncio. Isso é significativo? Tantos anos de vida sem nenhuma narrativa manifesta após a queda moral de Noé? Será que ele deixou de ter vida com Deus, ou seja, andar com Deus? Deus deixou de falar com ele devido ao pecado da nudez?

No caso de CAM, existem diversas e até absurdas possibilidades de mensurar o pecado que ele cometeu. Desonrar o próprio pai, com ou sem conotação sexual, talvez seja o que mais se explora. Levítico 20:17 usa a expressão “descobrir a nudez” como eufemismo para relações sexuais incestuosas. Isso tem levado alguns a sugerir que o pecado de CAM consistiu em algum tipo de atividade homossexual com seu pai. Contudo, esse ponto de vista não se sustenta, pelas diferenças de linguagem usadas em Levítico 18 e, em Gênesis 9.

Ao lermos Gênesis 9:22, “ver a nudez” indica uma atitude de contemplação desrespeitosa de CAM, ao ver que seu pai estava nu. Observa-se que não foi CAM quem desnudou seu pai, mas foi o próprio Noé quem se desnudou (o verbo está na voz reflexiva). Assim, o pecado de CAM provavelmente consistiu em zombar de seu pai, convidando outros para olharem para aquele insólito espetáculo. Tal zombaria estava em clara oposição ao mandamento de honrar pai e mãe.  

E CANAÃ, porque foi amaldiçoado? Qual foi o pecado dele? Alguns tentam explicar o fato afirmando que possivelmente ele agiu em conluio com seu pai. Orígenes[*] menciona a tradição de que foi Canaã que primeiro viu a nudez de Noé e foi chamar CAM.

Dentro do contexto histórico do Povo de Israel, podemos afirmar que a maldição sobre Canaã não ocorreu em decorrência do pecado de seu pai CAM ou dele mesmo. Antes, consiste num oráculo profético contra um futuro inimigo do povo de Deus, algo plenamente confirmado pela história posterior dos cananeus, povo originário de sua descendência. Os cananeus recebem a maldição, não por serem uma raça diferente, mas por causa de sua depravação moral e dos deuses a quem adoravam. Levítico 18:2-23, por exemplo, identifica várias práticas sexuais ilícitas com os pecados dos cananeus. Não nos esqueçamos de Raabe, a mulher Cananéia, que foi integrada ao povo de Deus.

Portanto, a maldição de Canaã deve ser interpretada dentro do contexto do Antigo Testamento e identificada como a vitória dos israelitas sobre os cananeus, habitantes da terra prometida.

        Para concluir, seria muito para nossa mente limitada tentar entender o que realmente aconteceu naquele dia. A bíblia relata outros acontecimentos mais graves do que “ver a nudez de Noé” e não acontece o lançamento de nenhuma maldição.

Noé além de um homem de Deus e profeta de Deus era pai e também avô. Conhecendo Deus como ele conhecia é difícil acreditar que foi por conta deste fato que toda uma nação (descendentes de CAM) fosse amaldiçoada.

Então a única conclusão que se pode ter desta passagem é que, possivelmente aconteceu algo mais que ainda não sabemos.

Mistérios........

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[*] Orígenes (em grego Ὠριγένης), cognominado Orígenes de Alexandria ou Orígenes de Cesaréia ou ainda Orígenes o Cristão (Alexandria, Egipto, c. 185 — Cesareia, ou, mais provavelmente, Tiro, 253. Foi um teólogo, filósofo neoplatônico patrístico.